A Vara de São Félix do Araguaia e o combate ao trabalho escravo

João Humberto Cesário
juiz titular da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino.

4 – CONDENAÇÕES JUDICIAIS

Lamentavelmente, nem sempre a via da conciliação, necessária à geração de investimentos sociais na região, se mostra viável. Em circunstâncias tais, não temos exitado em golpear duramente os infratores com a lâmina da justiça, de modo a impedir que a sociedade brasileira conviva com um inaceitável sentimento de déficit democrático. Três exemplos sobre o afirmado são emblemáticos.

No primeiro deles nos deparamos com a instauração de verdadeiro estado de barbárie em uma fazenda. Nesse caso específico pensamos que no local havia algo além do que a inaceitável redução de trabalhadores a condição análoga à de escravo. Na realidade a escravidão imposta era muito próxima daquela anterior ao advento da Lei Áurea. Limitando-nos ao pequeno espaço reservado para o presente articulado, podemos pontuar, à guisa de exemplificação, que um dos trabalhadores que tentou fugir do local apanhou de correntes, sendo ao depois amarrado junto a um caminhão, tendo seus dedos finalmente apertados com um alicate. Comprovando o narrado, havia encartado nos autos um exame pericial produzido por médico-legista, onde este afirmou que as lesões encontradas foram causadas por instrumentos contundentes e que a agressão foi contínua e cruel.

Nesse processo confrontamo-nos com uma situação de enorme dificuldade de enfrentamento. Ocorre que o Ministério Público, em virtude de uma conjuntura judicial compreensível para a época da propositura da demanda, acabou por postular uma indenização limitada a dezesseis mil reais em prol da sociedade. Não obstante, para os padrões da época do julgamento, tal montante se mostrava absolutamente inexpressivo.

Ficamos, com efeito, diante de um dilema, já que ou nos curvávamos ao dogma da adstrição da sentença ao pedido, ou adotávamos uma postura libertadora e verdadeiramente comprometida com os fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Sem titubear optamos pela segunda alternativa e fixamos a indenização pelos danos morais coletivos em um milhão de reais, fazendo-o com base em fundamentos jurídicos que agora não possuímos espaço para detalhar. Demais disso, determinamos a inscrição do "empregador" na chamada lista suja do trabalho escravo, de modo a impedi-lo de receber financiamento público para a sua ilícita atividade produtiva privada, além de anteciparmos tutela na qual impusemos ao infrator o cumprimento imediato de uma série de obrigações de fazer de adequação ambiental. Vale destacar que a aludida sentença foi confirmada à unanimidade pela 2ª Turma do e. TRT da 23ª Região.

Em vertente posterior, sentenciamos um outro processo em que os trabalhadores foram submetidos às mais degradantes situações ambientais de trabalho, nas quais ficavam expostos, dentre outras situações humilhantes, a alojamentos fétidos, situados próximos ao estoque dos agrotóxicos usados no combate das pragas da lavoura e servidos por instalações elétricas absolutamente improvisadas, que a qualquer momento poderiam provocar um incêndio de grandes proporções no local.

Nele também antecipamos a tutela relativa às obrigações de fazer necessárias à adequação dos alojamentos às normas de saúde, higiene e segurança no trabalho, além de condenar o requerido no pagamento de indenização fixada em quinhentos mil reais, a título de dano moral coletivo de natureza ambiental.

Já nos mais recentes julgamentos que proferimos, passamos por uma experiência no mínimo interessante. Ocorre que um conjunto de dez trabalhadores conseguiu fugir de uma fazenda na qual estavam submetidos a condição análoga à e de escravo e vieram eles próprios a juízo para postularem os seus direitos individuais, sem passarem pelo atendimento do Ministério Público.

Até onde sabemos, tal fato é inédito no país, já que não temos outras notícias de que trabalhadores, individualmente considerados, tenham vindo à Justiça do Trabalho para pleitear que o Judiciário reconheça a condição de escravos a que foram reduzidos. Creditamos esse fato alvissareiro ao diálogo franco que temos mantido com a sociedade local, o qual tem contribuído decisivamente para que a informação sobre os direitos trabalhistas básicos seja disseminada entre os trabalhadores da região. Vale ressaltar, que no julgamento das mencionadas ações, condenamos o infrator ao pagamento de verbas rescisórias, horas extras e indenização por danos morais individuais, e, além disso, determinamos a sua inscrição na "lista suja" mantida pelo Ministério do Trabalho e oficiamos o Ministério Público do Trabalho para a propositura da correlata ação civil pública, na qual serão discutidos os possíveis danos experimentados pela sociedade difusamente considerada.

Com tais atitudes, cremos que estamos construindo uma nova cultura na região, arrimada na centralidade do mundo do trabalho e permeada pelo absoluto respeito aos direitos sociais fundamentais.

Para ler o artigo por inteiro, siga para o Jus Navigandi.

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