Entrevista com Laura Frade

Todo rigor penal aos excluídos (Última Instância)
Luiz Flávio Gomes

Laura Frade acaba de se doutorar pela UnB (Universidade de Brasília) com a tese “O que o Congresso Nacional brasileiro pensa sobre a criminalidade”. Foi objeto da sua pesquisa (fundamentalmente) a produção legislativa no âmbito criminal (leis e projetos de leis) ocorrida durante a 52ª Legislatura (fevereiro de 2003 a fevereiro de 2007), que foi, certamente, uma das mais férteis no item “incremento da legislação penal”.

A partir do seu trabalho está empiricamente comprovada a tese de que a postura do legislador brasileiro é (efetivamente) elitista e discriminatória em relação ao crime, ao criminoso e à criminalidade. Uma das suas principais hipóteses de trabalho consiste no seguinte: “o legislador não tem consciência do conjunto de imagens envolvidas no assunto” (criminalidade).

Em outras palavras: quando legisla sobre direito penal não tem consciência dos efeitos (imediatos e colaterais) da sua produção legislativa. Parte sempre da premissa punitivista, mas vendo a criminalidade “dos outros”. Seu alvo, de outro lado, é muito preciso: os excluídos.

Elio Gaspari (Folha de S.Paulo de 21 de abril de 2007), referindo-se à tese de Laura Frade, sublinhou o seguinte: “Em quatro anos, foram apresentadas 646 propostas relacionadas com o crime. Delas, 626 destinavam-se a agravar penas, regimes e restrições. Só duas relacionavam-se com as delinqüências da turma do colarinho branco. Esse mesmo Congresso atravessou seis CPIs e absolveu 12 dos 19 parlamentares incriminados. Baseada na análise do processo legislativo e em entrevistas com deputados e assessores, a professora sugere a hipótese de que o Congresso “não tem consciência do conjunto de imagens envolvidas na matéria e legisla para um transgressor que tem baixa instrução, é doente, indigno de confiança, indisciplinado, pouco humano, desocupado, sujo e inferior.”

Algumas opiniões de parlamentares são óbvias (“o debate é casuístico”), mas pelo menos foi reveladora: “Falta profundidade. Funciona como revanche e nada acontece”.

“Esse sentimento de revanche indica que a coesão social brasileira está indo para o brejo. Os legisladores do andar de cima querem leis mais severas para os crimes do ‘outro’: ‘O crime é percebido como um descumprimento da lei, mas que ele ocorre ‘lá fora’”.

“A conclusão da professora é dura: A lei, nessa legislatura, não esteve voltada à cidadania, e sim à exclusão. Não rompeu paradigmas. Os fortaleceu. Não contribuiu para a melhoria da condição social. Expôs a identificação dos elaboradores legais com a elite, (com uma) idéia da criminalidade fortemente ligada à pobreza.”

O legislador brasileiro, como se vê, identifica-se fielmente com a retrógrada visão criminal da elite brasileira, confia na sua total impunidade, coloca-se acima de qualquer suspeita e legisla para os excluídos (na verdade: contra a criminalidade dos excluídos, dos pobres, dos miseráveis).

Ele não se enxerga como criminoso, nem atual nem potencial. Paulo Maluf, discordando da maioria no assunto delação premiada, disse: “Sou contra esse projeto porque não acredito nas palavras de bandido”. Bandido (sic) é sempre “o outro”.

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Fonte

Acessoria de Comunicação Social da UnB - Entrevista com Laura Frade

UnB AGÊNCIA - De 2003 ao início deste ano, o Congresso apresentou 646 propostas relacionadas ao crime. Quase todas eram destinadas a agravar penas, regimes e restrições e só duas eram voltadas para crimes do colarinho branco. Na sua avaliação, o que esses números sugerem?
LAURA FRADE – Na prática, as leis são feitas para prender pobres e endurecer a vida deles e afrouxar a dos ricos. Na fala dos parlamentares, há muitas visões humanas e positivas a respeito da criminalidade. Mas, quando se faz o mapeamento das proposições da legislatura passada, vemos que apenas 20 eram voltadas para melhorar as condições do preso e realizar a socialização. O fato de ter apenas duas proposições relacionadas ao colarinho branco mostra que algo leva o parlamentar a endurecer só para o pobre.

UnB AGÊNCIA – O Congresso protege a elite?
FRADE – Ele se identifica com a elite e alivia para ela. A idéia de que o rico protege o rico é muito clara, embora não seja uma relação direta. Existe uma visão de que o criminoso não faz parte da classe alta. Os parlamentares associam o crime com a baixa instrução, por isso, é difícil considerar que um juiz seja bandido. Se dentro de mim, acredito que o criminoso tem pouca educação, como que eu posso correlacionar o crime com alguém que tem uma formação superior?

UnB AGÊNCIA - Nesses quatro anos, o Congresso passou por seis CPIs e absolveu 12 dos 19 parlamentares incriminados, houve estratégias de deputados e senadores para burlarem cassações e propostas de aumento do próprio salário. Esses fatos reforçam a idéia de impunidade e privilégio entre a elite?
FRADE – Essa foi a legislatura da qual mais se teve notícia de corrupção e de falta de punição. O Congresso mostrou sua sombra. Historicamente, isso sempre aconteceu, mas nessa legislatura o volume foi extraordinário. Esse Congresso, que deveria ter uma percepção de si como criminoso em certo aspecto, pela quantidade gigantesca de acusações recebidas, acha que o crime está lá fora. Pouco se falou a respeito da corrupção, praticamente nenhum projeto trata desse assunto. Mas o Legislativo está simplesmente multiplicando um paradigma que prevalece na nossa sociedade. O brasileiro acredita que o rico não é criminoso, que o que ele faz é compreensível e desculpável. A ação da Polícia Federal no sentido de ir contra a elite é uma forma de mudar esse padrão de comportamento.

UnB AGÊNCIA - Inquérito da Polícia Federal que deu origem à Operação Furacão mostra a tentativa da Máfia dos Bingos de fazer lobby no Congresso Nacional para conseguir aprovação de projetos de seu interesse. Como coibir essa prática?
FRADE – O lobby, enquanto forma de participação social, é legítimo. Quanto mais a sociedade for para o Legislativo e se apropriar dessa ferramenta de participação, melhor. O problema é que, no Brasil, se confunde lobby com crime. Tudo o que se faz indevidamente e que contraria o código penal é crime. Mas, no nosso país, quando a elite tenta agir a favor de criminosos no Congresso, a gente não chama de bandido, dizemos que eles fazem lobby. É preciso regular essa atividade no país e existe há muitos anos um projeto de lei nesse sentido tramitando no Congresso. O problema é definir quem pode ser lobista sem tirar o direito de todos de participação popular.

UnB AGÊNCIA - Também segundo a Polícia Federal, um ministro do Superior Tribunal de Justiça pode estar no centro do esquema de comercialização de sentenças a favor de bingueiros e bicheiros. Quais mecanismos legais para combater o tráfico de influência e como garantir a punição de pessoas ligadas ao Judiciário?
FRADE – Há leis em quantidades industriais no Brasil. O problema está na aplicação. Quando o Judiciário, poder responsável pela aplicação da lei, está contaminado, precisamos da lisura dos outros órgãos para garantir que o mal seja exterminado. Em todo lugar, tem gente que não atua bem profissionalmente e, no sistema jurídico, não é diferente. Não precisamos ter deuses no Judiciário, precisamos de um controle mais sério sobre a atuação dele.

UnB AGÊNCIA – A impunidade impera em muitos casos no país, principalmente, entre a elite. A senhora tem uma expectativa positiva em relação à punição dos acusados da Máfia dos Bingos?
FRADE – Brasileiro, se não tiver uma visão positiva, é melhor se atirar da sacada (risos). Minha expectativa é positiva porque acredito que podemos mudar as imagens mentais. É importante para isso que o povo veja coisas novas. Quando Lula assumiu o governo, foi um momento muito interessante porque, pela primeira vez, um menino pobre viu alguém que tinha sido pobre como ele chegar ao poder. Não estou discutindo partido político, estou falando de novas imagens. Tem um ditado que diz: “se você acha que pode, pode mesmo; se você acha que não pode, tem razão”. Então, essa imagem da Polícia Federal prendendo ministros de tribunais é uma possibilidade nova. Isso leva o brasileiro a pensar que as coisas estão mudando.

UnB AGÊNCIA - Em 1997, um relatório do governo dos Estados Unidos afirmou que a corrupção era endêmica no território brasileiro. Na ocasião, o Brasil se comprometeu a criar medidas para combater a lavagem de dinheiro. Dez anos depois, a corrupção ainda ocupa grande espaço no nosso noticiário.
FRADE – Ninguém acorda de manhã planejando como transformar o Brasil num país horroroso. Falta vontade política para combater a corrupção. Vários parlamentares mencionam isso. No fundo, a população também percebe que, por mais esforço ou interesse que o parlamentar tenha, ele encontra muita dificuldade. A forma como o processo legislativo é elaborado e a postura do Executivo dificultam. No Brasil, o Executivo, em conjunto com o colégio de líderes, forma a agenda do Congresso. Isso faz com que o Legislativo também não tenha tanta liberdade para pautar o que deseja. Quando o Executivo não quer que algo não seja decidido, ele simplesmente não se mexe.

UnB AGÊNCIA - Depois de estudar por dois anos o que o Congresso brasileiro pensa sobre a criminalidade, é possível dizer que o combate ao crime é uma prioridade entre nossos parlamentares?
FRADE – Não, essa não é uma prioridade. Apenas 7% das matérias do Legislativo tratam do tema. O combate à criminalidade é uma questão de revanche no Brasil: acontece alguma coisa que fira a elite, então se elabora um projeto para agravar as penas e punir o pobre. O problema nisso é que estamos criando duas classes de cidadãos no país, estamos dissolvendo a coesão social. Todas as vezes que se tem um afrouxamento da coesão social, criamos problemas sociológicos importantes, como é o caso do PCC em São Paulo. O que devemos enfrentar não é só a criminalidade objetiva, mas o que está acontecendo com a sociedade para que a criminalidade tenha crescido tanto.

UnB AGÊNCIA – O que está acontecendo na nossa sociedade?
FRADE – O brasileiro não tem mais uma visão de povo como nação, está dividido entre rico e pobre, e isso está na base da criminalidade. O economista indiano que venceu o prêmio Nobel (Amartya Sem) diz que quando geramos uma diferença tão grande na sociedade ao ponto de alguns não terem possibilidade de participação, excluímos uma massa gigantesca de pessoas, que nunca mais na história do universo vai existir. Dessa forma, a sociedade perde para sempre. A noção da coesão social vem da percepção de que cada um tem algo absolutamente original, importante e fundamental para acrescentar ao todo.

UnB AGÊNCIA – O que levou a sociedade ficar tão dividida?
FRADE – No Brasil, existe uma relação profunda entre a elite e o Estado. Desde o Brasil colônia, nossa terra foi fatiada e dividida e os donos passaram a decidir a respeito dela. Nossa história, ajudou a formar o psiquismo coletivo e nossas próprias imagens sociológicas. É importante notar que essas representações estão como pano de fundo da elaboração das leis. Precisamos perceber que os parlamentares criam penas para punir os pobres, atuam de maneira ineficaz e estimulam a pobreza política, perpetuando a idéia de que não somos capazes de mudar a realidade. A gente precisa revisar esses paradigmas se quisermos caminhar em direção a algo melhor. E o primeiro passo é perceber que essas imagens existem.

Fonte

Tese de Laura Frade

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