Fonte: Terra Magazine.
Quinta, 29 de novembro de 2007, 08h00
Márcia Novaes Guedes*
No momento em que o sonho de Monteiro Lobato de que o Brasil teria energia abundante é confirmado pela Petrobras com as descobertas do campo de Tupi, juízes, procuradores e advogados trabalhistas dão um salto para o futuro na 1ª Jornada de Direito e Processo do Trabalho. As medidas aprovadas pelos magistrados não têm força de lei, mas criam padrões para toda decisão tomada por eles - ou seja, vale tanto quanto a legislação.
O evento aconteceu no último dia 23 em Brasília (DF), na sede do TST (Tribunal Superior do Trabalho), por iniciativa da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) e da Escola de Aperfeiçoamento de Magistrados.
O encontro contou com cerca de 200 operadores do direito trabalhista de todos os cantos do país, que, pagando do próprio bolso as despesas com viagem e estada, aprovaram cerca de 90 propostas sobre direitos humanos e relações de trabalho. O evento contou com apoio do TST, o que reforça a perspectiva de as proposições serem acolhidos pelos juízes e Tribunais.
No discurso de abertura, o ministro aposentado Luciano de Castilho advertiu que, no Brasil, não se pode falar nem pensar o Direito sem lembrar a herança de 4 séculos de escravidão. Ele recordou que a norma jurídica, em especial a trabalhista, deve ser interpretada na sua dimensão mais ampla, como a variante na formação do consenso, indispensável para a sobrevivência das relações sociais democráticas.
Revista íntima
A Comissão de Direitos Humanos apresentou e o plenário decidiu que na solução do conflito, o juiz deve interpretar e aplicar a norma fazendo prevalecer a dignidade da pessoa humana. Inverte-se a equação, até então, prevalente no Judiciário. A Constituição de 1988, que rompeu com o pacto liberal e adotou a fraternidade da justiça, a valorização do trabalho e a dignidade humana como paradigmas do ordenamento jurídico, parece que, finalmente, vai entrar em vigor.
Para juristas, isso toma feições (quase) de revolução. No que toca ao direito à intimidade, a revista íntima ou não - aquela feita aos objetos pessoais, bolsas e bolsos - foi abolida. Ela sempre foi aceita pela maioria dos juízes e Tribunais trabalhistas como legítimo exercício do poder disciplinar do empregador.
Mesmo com os mais modernos recursos de controle e segurança sem constranger a pessoa, o Judiciário ainda não tinha se dado conta que a senzala e a casa grande subsistiam. Essa revista na saída do trabalho humilha e constrange, diariamente, milhares de trabalhadores que agem de boa fé. A prevalecer o novo entendimento, aprovado na plenária da histórica Jornada, a revista, que é a violação da intimidade, torna o infrator passível de condenação em danos morais.
Ônus da prova
A plenária aprovou que toda vez que a dispensa do empregado dissimular violação da dignidade, constituindo-se em ato arbitrário ou abuso de direito, deve ser decretada sua nulidade, assegurando-se o direito de reintegração ao emprego. Em seguida, aliviou-se sobremaneira o encargo da vítima de provar os fatos em juízo, abrindo-se a possibilidade de inversão do ônus da prova, devolvendo ao empregador a obrigação de provar que com a sua conduta não violou direito fundamental, desde que as alegações da vítima estejam fundadas em indícios razoáveis.
Direito de greve
A conduta anti-sindical, considerada crime em vários países da Europa, foi discutida a partir de proposta defendida pelo Juiz Grijalbo Fernandes Coutinho. A plenária aprovou que as greves atípicas e políticas, realizadas por trabalhadores, são constitucionais. O entendimento é que a Constituição não reduziu a definição da greve; ao contrário, conferiu aos trabalhadores a mais ampla liberdade para deliberarem sobre a oportunidade da manifestação e dos interesses a serem defendidos. Assim, a greve não se esgota com a paralisação das atividades. A sua execução envolve piquetes, ocupação do local de trabalho, a "operação tartaruga" e, até mesmo, a defesa de bandeiras mais amplas ligadas à democracia e à justiça social.
Terceirização
A terceirização e o vigente enunciado 331 do TST,que a chancela, sofreram um golpe fatal. A nova orientação recomenda que a Justiça do Trabalho deve rejeitar o modelo que transforma o trabalhador em mercadoria, declarando nula toda forma de intermediação de mão-de-obra e mantendo-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, seja na atividade-fim, seja na atividade-meio da empresa. A nova proposta, portanto, restringe a terceirização àquela velha e legítima possibilidade prevista na Lei 6.019 de 03/01/1974, que permite a contratação temporária para fins de atender necessidade transitória da empresa urbana de substituição de seu pessoal regular e permanente (férias, licença gestante) ou a acréscimo extraordinário de serviço (vendas de Natal e de final de ano, por exemplo), mantendo-se em todo caso a eqüidade da remuneração e a responsabilidade solidária entre as empresas.
O mundo mudou. Organizar empresa para fornecer mão-de-obra a outra, de modo permanente, alugando gente como se fosse coisa, era conduta nociva. Frustrava, de modo fraudulento, o direito assegurado pela legislação do trabalho. Muitos juristas a consideravam crime contra a Organização do Trabalho, previsto no art. 203 do Código Penal brasileiro. A partir dos anos 80, houve um violento processo de reestruturação das organizações e o assédio moral foi usado para enxugar e modernizar empresas, implantando a terceirização. A primeira "onda" terceirizou os serviços gerais (limpeza, manutenção de prédios e refeitórios). A segunda englobou os serviços de apoio (departamento de pessoal e a informática). A terceira onda começou com a produção, abraçou a logística e já atingiu o cérebro das organizações, qu delegaram sua estratégia para consultores.
Nós conhecíamos as razões técnicas que fomentaram a terceirização: focar todos os esforços na atividade-fim da organização Mãe, deixando para outras as atividades-meio e de apoio. Além de driblar a legislação trabalhista e, de quebra, enfraquecer o movimento reivindicatório dos trabalhadores com a fragmentação das atividades.
Coincidentemente, no dia de abertura da Jornada, ficamos sabendo por um irreverente cronista de CartaCapital que um colunista do New York Times descobriu o que realmente está por trás da terceirização. Ele diz que a terceirização seria fruto de uma busca espiritual, cujo objetivo é atingir o nirvana, a libertação, a transcendência. Portanto, as novas tecnologias estariam nos fazendo passar da individualidade para a "consciência universal" e suavemente nos auto-ajudando a decidir sobre nossas preferências e repulsas.
Com a eficiência cibernética, prossegue o cronista, a memória tornou-se supérflua, desnecessária, já que com o sistema de pesquisa Google, basta digitar a palavra-chave e a verdade jorra. Autonomia, independência de opinião e pensamento, além de muito complicados, perderam a importância e o valor que tinham. A cada dia ficamos mais próximos do tempo em que todos estarão "unidos por uma única mente coletiva" a nos orientar sobre os nossos gostos, preferências, desejos, repulsa e ódio. O novo mundo está a dois passos, conclui o cronista: sai de cena Adam Smith com a sua economia política com vínculos ético-filosóficos que contaminam a pureza científica com valores morais. É o fim da era do "Homo economicus" e entra em cena os magos da auto-ajuda inaugurando a era do "Homo tertius".
Os juízes fundamentalistas e quixotescos acertaram um golpe decisivo na avançada "meditação" do capital em busca do nirvana pela via da terceirização. E com as recentes descobertas dos novos campos de petróleo no país, esses Juízes deverão fazer tesouro do arrependimento que hoje padecem as maiores petroleiras privadas do mundo por terem enxugado sua força de trabalho em um total de 500 mil trabalhadores nos últimos 20 anos. E agora levarão cerca de 10 anos para, com sorte, reverter essa situação.
Márcia Novaes Guedes é juíza do Trabalho da Bahia. Doutora em DT pela Universidade de Roma Tor Vergata e membro da AJD - Associação Juízes para a Democracia. E-mail: marcia (a) micks.com.br